domingo, 6 de agosto de 2017

MEMÓRIA ORAL (213)


QUER COMER BEM? FUJA DE LUGARES CAROS - OS MAIS SIMPLES APRESENTAM IGUARIAS INIGUALÁVEIS

A lição do título deste escrito eu a reafirmo na Argentina, mais precisamente num dos seus lugares mais simples e populares, o bairro de La Boca, pertinho do estádio do Boca Juniors. Após o grupo brasileiro ter gasto valores consideráveis em restaurantes de fachada bonitinha, mas de comida de gosto discutível e preços nada módicos, eis que na tarde da última quarta, 02/08, hora do almoço, após recusas para se sentar junto aos restaurantes na quadra do comércio do bairro, escapulimos para as quebradas, ruazinhas coloridas nas transversais da movimentada rua comercial e por indicação de Cláudio Goya, procuramos um restaurante que ele havia conhecido anos atrás, no simples, modesto, popular Mercado de La Boca.

A simplicidade se fazia presente. Na cara não ser ali um local de e para turistas, mas para a população local. Nas barracas do mercado, desde roupas e alimentação, tudo com um preço bem diferente daquele oferecido ao turista. Primeiro vasculhamos o local e lá nos fundos, ao lado de um sebo e loja de antiguidades, o tal restaurante. Goya nos confirma: "É esse mesmo". Todos se sentam e primeiro perguntam sobre o cardápio do dia. Nada de uma apresentação refinada, mas pela boca do proprietário, a informação do que está sendo servido naquele dia. Enquanto cada um escolhe o que comer, eu adentro o sebo e fico vasculhando os livros. O proprietário percebendo tratar-se de turista, diz algo sobre uns livros raros, mas me interesso pelos CDs. Ele me fala de cada um que escolho, cinco no total. "São 30 pesos cada", diz. Pelos meus cinco cobra apenas 100 pesos e ao localizar um folheto da eleição que se aproxima, pergunto se os candidatos que faz campanha são da esquerda:


- Sim, me diz. Aqui em La Boca não dá para apoiar outra coisa. Já fomos enganados demais e esse presidente atual, mesmo já tendo sido presidente do Boca, não faz nada por nós, aliás, só faz contra o povo. Defendo candidatos de esquerda. Essa eleição que se aproxima é para votarmos em listas e daí, os mais votados serão candidatos de fato na eleição de outubro. Estamos em plena campanha.

Pergunto de Cristina Kirchner, pois não vejo nenhum papel de sua campanha na cidade. "Nem vai ver, pois ela não é candidata aqui de Buenos Aires e sim da província onde reside". Explica sobre como se processa a eleição deles e me auxilia a escolher os CDs. Ficaria mais tempo ali papeando, mas a comida já estava sendo servida numa mesa montada só para o grupo ali na frente. Escolhi um bife a milanesa com batata doce, Ana com purê e assim por diante, com filés e quetais. os vinhos disponíveis estavam todos colocados em cima do balcão e três foram levados para nossa mesa.

Mal começamos a comer e da mesa do lado, dois senhores nos reconhecendo brasileiros puxam conversa. Um vem até a mesa e me mostra o jornal do dia com a manchete do golpista Temer sendo confirmado pelos deputados brasileiros. Retira a página do seu jornal e me entrega: "Leve, é sua. Quero que saiba como os jornais daqui retrataram o que acontece em seu país". Não desiste de conversar e me traz uma taça de vinho e pede para provar. Trata-se do Vasco Viejo. Provo. Não é dos meus preferidos, mas não refugo a taça inteira e o assunto de prolonga. Vou até sua mesa e me apresenta o amigo. Quando lhe pergunto seu time, a surpresa:

- Sou River Plate.

"Mas como", lhe questiono, enfim estamos no reduto do adversário, o Boca. Ele ri e me leva ao dono do restaurante, outro torcedor do River e lá nos fundos lendo outro jornal, um senhor debaixo de cartazes do River. Descubro serem todos torcedores do River e um deles me explica: "Aqui pode. o pessoal do bairro respeita muito a gente, somos daqui e entre nós predomina o respeito, mas isso não serve para todos. Para nós, vale".

Não me lembro do nome de nenhum deles, eis nossa falha, ninguém registrou o nome de ninguém. Não nos preocupamos com isso, mas ficou registrado a simpatia reinante naquele ambiente. Goya num momento diz: "Sou muito exigente com restaurante refinado que propõe algo e não correspondem, cobram muito e a comida deixa a desejar, mas com esses, os simples, a proposta é essa que estamos vendo e daí, vão comprovar, simples, ótimos e com preços justos". Foi exatamente o que ocorreu. Pedimos a conta e o proprietário vem fazer a soma junto de nós. Não saiu por 80 pesos para cada (cada cinco pesos vale um real).

Não resisto e lhe digo ter sido um dos melhores lugares onde comi, comida honesta e preço justo, além da receptividade inigualável. Ele sorri, me deixa tirar fotos do local e conta histórias do lugar. Diz ser uma casa onde sua família toda trabalha e atende basicamente o pessoal do bairro. Os dois amigos da mesa do lado se intrometem na conversa e dizem frequentarem ali sempre, pois é o que podem pagar. A conversa flui e escapo dela por instantes para me despedir do senhor do sebo. Ele sai para fora e se junta ao grupo. Na coletiva despedida digo que queria muito comer algo e se eles sabiam onde poderíamos encontrar "morcilla" (para nós, o popular chouriço). Cada um indica o mesmo lugar e aponta um lugar na saída do mercado.

Trocamos abraços coletivos e saímos todos para comprar a morcilla e saciar meu desejo, todos conversando sobre o mesmo assunto: mesmo com toda simplicidade, foi para todos um dos melhores lugares onde a comida foi farta, bem servida e satisfez a todos. E assim comprovo o que postei como título deste texto: lugares simples, na maioria das vezes são lugares muito mais agradáveis (em todos os sentidos) do que os rebuscados e cheios de rococós. E além de tudo, acredito não seria tão fácil conversar tão animadamente e de forma tão calorosa em nenhum lugar de comprovado refino. Daí, continuo, mais e mais, me afundando nas "quebradas do mundaréu", onde praticamente tenho muito poucas decepções.

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